terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Espaço Azul - Confissões de um xamã


Viver entre dois mundos, esse foi o meu destino. O mundo físico e o Espaço Azul.
Não lembro de muitos detalhes, mas conheço a historia. Ela começa dentro da tenda ritualística, onde vivia. Sempre sentado no chão sobre tapetes e tecidos sagrados. Os que desejavam ser ouvidos se sentavam à minha frente, os gravemente doentes eram deitados ao meu lado, sempre o esquerdo.
Eu os ouvia, mas o importante era senti-los. Lembro-me de um índio adulto, forte, grande guerreiro que estava imóvel, como morto. Deitaram-no ao meu lado. Palavras não eram necessárias. Eu podia sentir que sua imobilidade vinha da mente, não do corpo. Respirando profundamente, alterando minha vibração, comecei a atrair a energia densa que paralisava o guerreiro. Era uma fumaça cinza com estrias negras. Coloquei-a para dentro e vibrei para o Espaço Azul.

Era azul por causa da Lua, uma lua jamais vista na Terra. Tão próxima, tão grande e luminosa. Ali o Sol não brilha. A noite é eterna. Não há escuridão. A Lua projeta a luz do Sol. Luz que é transformada quando refletida por ela. O Espaço Azul, acompanha a Lua. Essa dimensão pertence a ela.

Minha mente percebia os seres do lugar. Grandes espíritos vivem lá. O Lobo, a Águia, a Grande Serpente. Seres poderosos. Suas projeções na Terra são meras sombras. Sombras tênues, do seu imenso poder.
Deixei ali a fumaça do guerreiro. Seria transmutada e dirigida ao devido lugar.
O índio ficou curado, como quase todos na tribo ficavam. Na maioria dos casos, os problemas eram resolvidos com a imagem de uma planta ou bicho que surgia na minha frente, enquanto estava no Azul. Cogumelos, ervas, determinada carne de animal. Lá, eu percebia o que era necessário e como seria preparado.

Doei minha vida ao auxilio da tribo. Vivia mais no Espaço Azul do que na Terra.  Era o meu lar. Não tinha mulher, filhos, nem animais. O que possuía de mais próximo de um ser, era a ossada de um cavalo que eu usava na cabeça. Nela estavam presos  pele de urso e penas de aves. Pele e penas eram tingidas de negro, igualmente como minha capa de pele de búfalo, apenas a ossada era branca.
Eu era um ser único com aquela roupa. Não apenas um homem, mas um aglomerado de pedaços de seres,  um tipo diferente de ser . Era amedrontador. A vestimenta estimulava minha mente e das outras pessoas. Catalisava a energia de cura. Com a experiência as roupas ficaram desnecessárias, mas eu gostava de parecer diferente.

Tudo corria bem, até o dia que estando em transe, no meu querido Azul, fui trazido repentinamente pelos gritos do Grande Chefe. A tentativa de retorno ocorria aos pedaços. Ora via a grande cabeça do chefe, ora estava no Espaço. O retorno deve ser tranqüilo e gradual, mas os gritos daquele porco não permitiram. Quando finalmente voltei, senti sua saliva respingando no meu rosto. Quem era ele para me tratar daquela maneira? A batalha não foi vencida por eu não ter invocado os espíritos corretos? Idiota! Um homem que apenas sabe comer, cagar, guerrear e subir nas índias se sentia no direito de cuspir no líder espiritual. Um líder mundano gritando com o único da tribo que podia se comunicar com o Grande Espírito. O único que tinha acesso ao Espaço Azul. Homem ignóbil, porcaria de carne, vou fechar sua garganta, sem mover um músculo. E foi isso que fiz. Em determinado momento tive a opção de destrancar sua garganta. E se ele quisesse vingança? Eu sabia que não, mesmo se ele tentasse eu não seria pego. Quem atinge o  Azul desenvolve olhos energéticos por todo o corpo.
Eu sentia seu medo. Sentia que sua energia vital era controlada pela minha mente e pela primeira vez em minha vida de xamã, senti o sabor do poder. O poder de vida e morte. E eu gostei. Esse foi o meu grande erro.

Outro chefe veio, mas meu poder estava consolidado. Revivi rituais com  sacrifícios de animais que eu mesmo tinha proibido e nunca experimentado. Tudo pode e deve ser feito energeticamente. Catalisadores que geram sofrimento a outros seres, são desnecessários. Mas, o frenesi do poder, da absorção de outra energia vital era absolutamente inebriante. Continuei minha escalada insana. Sacrifiquei o mais belo e forte cavalo da tribo. Como lamento tal ato! Sou afortunado, esse é o único sacrifício que me lembro. 

Decidia quem iria ser curado ou não. Um curandeiro nunca, nunca deve diferenciar os auxiliados.

Em meu corpo apareciam chagas, principalmente nos braços. Essas eram rapidamente sanadas em minhas idas ao Espaço Azul. Mas o que eu não percebia ia se deteriorando silenciosamente. O Azul aceita aqueles que aprendem a vibrar sua dimensão, não diferenciando justos dos injustos.

E assim fui até a morte do meu corpo físico. Eu o vi retorcido, seco num canto do que um dia foi minha casa de cura. Desprezava aquele corpo, desprezava a tribo. Todos eram sombras mediante o meu poder.

Meu corpo sutil estava bem saudável e ainda faminto por poder, mas algo estava muito diferente. O meu querido Azul já não mais me aceitava. Uma parte do portal morrera com o corpo físico.

Percorri os quatro cantos a procura de homens que alimentassem minha fome por poder. Eu vinha por trás, encostava neles, sentia seus desejos, soprava em seus ouvidos, observava seus atos e saboreava a energia dos momentos de vitória.

Os brancos em suas roupas negras desejavam mais intensamente que os índios. Para eles coisas são coisas, animais são coisas, pessoas são coisas. Tive um verdadeiro transbordamento de sensações de posse, de subjugo. Eu era... um espírito obsessor.

Não tenho noção do tempo que permaneci assim. Um dia descobri que tudo era sempre igual. Não havia evolução, apenas estagnação. Decidi me libertar. Não tinha mais coração, mas algo pesava em mim. Peso no peito pode ser uma descrição para um espectro?

Não tinha desejo de voltar à tribo. Eu devia voltar aos animais. Esses, tão indefesos, mereciam minha doação. Fui para as planices.  Vi as manadas de búfalos, senti a força dos lobos, a agilidade da águia e ajudei. Percorria os campos auxiliando quem precisasse. Ajudava nos partos. Primeiro verificava a nova vida, depois cuidava da mãe. Elas sempre ficam exaustas. Minha principal lembrança é do parto de uma búfala enorme e forte. É bom recordar os carinhos que fiz naquele nobre animal. Eles percebiam minha presença.

Depois de auxiliar energeticamente animais, me senti preparado para  voltar a tribo. Voltei. Nada tinha mudado, apenas os rostos. Agia como nos campos, ajudando. Muitos rostos se foram e novos vieram. Por isso, acho que estive lá por um longo tempo. Alguns me viam ou percebiam e sempre se assustavam. Virei uma lenda. Um fantasma negro que assustava e auxiliava. Eu ainda me dava o direito a alguns caprichos. Gostava de ficar ao lado do caldeirão de comida. Vibrar de uma forma mais densa e sentir o aroma do alimento. Comer eu não podia. Sentir o cheiro era bom e não interferia na vida de ninguém.

Um dia, ao cair da tarde, na rotina da tribo, uma energia vibrando fracamente aguçou meus sentidos. Fui ter numa tenda, onde uma índia jovem dera a luz a um bebê fraco no corpo e forte na alma. A criança jazia em cima do ventre da mãe. Estava fraca. Seu corpo emanava uma luz branca e as vezes dourada. Naquele instante, soube o que deveria fazer. Aquele, se sobrevivesse seria um grande chefe. Eu doei toda energia do meu corpo sutil para o pequeno. Senti meu peito esvaziando, esvaziando, até não existir mais nada que me prendesse à Terra.

Eu tinha medo de ir para o Grande Espírito, afinal, tinha desrespeitado tudo o que me foi ensinado. Não há necessidade de medo. O entre vidas vai oferecer o que você realmente acredita que ele vai oferecer. No meu, fui recebido por pequenos seres dourados que limpavam uma espécie de corpo que eu possuía, até a luz dourada aparecer. Me juntei à minha grande consciência. Me dissolvi. Me reintegrei.
Agora fui destacado. Acordado dos mortos. Para que? Para contar minha história. Ela vai acreditar ou duvidar? Tanto faz. Sai da escuridão para acompanhá-la. Ela sou eu, me aceitando ou não.

Cintia M.B.Silva

Imagem aproximada. Fonte: Len's Shaman

Um comentário:

Anônimo disse...

Lúcido testemunho de uma grande experiência !