quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A menina - Um conto curto de uma história muito longa


“Isso vai  ficar bom, muito bom.” Imaginava a menina de 7 anos, olhando fixamente uma robusta ave negra deitada na grande mesa de madeira. Enquanto isso, o corpulento cozinheiro estava de costas, preparando alguma outra deliciosa iguaria.

Ela sabia que para saborear o prato que estava sendo preparado, seria necessário roubar. Roubar um pedaço da ave assada, seria impossível, mas uma batata ela pegaria. Isso já estava decidido. Batatas capturam o sabor do prato principal. Ela também sabia que se fosse pega a surra seria enorme. As punições no castelo eram duras para os servos e ali crianças também eram servas.

Percorreu com o olhar a grande cozinha a procura da mãe. Localizou a esguia senhora debruçada  no caldeirão de sopa. Sua mãe era responsável pela comida dos servos. “A nossa comida não é ruim, mas a deles é tão melhor.” Pensar sobre isso causava um grande pesar na pequena. Observar o preparo, sentir os aromas e nunca poder saborear a comida dos senhores era uma tortura. Veja, mas não toque. Você não é suficientemente bom para essa comida. Por isso ela roubava. Roubava batatas. Já tinha sido pega algumas vezes. Alguns servos não se importavam, mas outros e principalmente o cozinheiro, batia com o que tivesse na mão. As dores e as marcas permaneciam, mas não eram maiores do que a vontade de comer o que era proibido.

Os dias eram quase tranqüilos na cozinha do castelo. Fora um acidente ou outro, uma surra ou puxão de cabelos. Tudo quase sempre transcorria igual, a não ser quando havia uma ocasião especial. Um jantar, uma festa. Então a cadela enlouquecida descia dos céus para infernizar, humilhar, deixar em agonia todas as criaturas que faziam parte do preparo.

Ela vinha com suas aias. Vinha sempre em lindos vestidos beges. O cabelo impecável, em arranjos que valorizavam o rosto magro e austero. Mas há tempos que a juventude e alegria tinham deixado aquela face. Se é que algum dia foi alegre, pode ter sido bela. Seu perfil tinha algo de chocante. O nariz era grande demais. Alguns servos a chamavam de cadela bicuda.

Ela não descia apenas em ocasiões importantes e quando isso acontecia era pior. Vez ou outra,  descia apenas para fazer xingamentos, gritar com os servos. Dizia que a cozinha era um chiqueiro e todos seus trabalhadores eram piores que porcos e cães. Ela agarrava a touca das servas e arrancava com ódio, dizendo que como podia a comida ser preparada por mulheres que deveriam estar trabalhando no puteiro, ao invés do castelo. Seus gritos eram estridentes e sua boca se tornava mais suja do que a dos soldados bêbados.

Diziam as arrumadeiras que suas crises de ira aconteciam logo após brigar com o Dom. As brigas ocorriam com alguma freqüência. As mulheres que trabalhavam no céu, comentavam que ele a chamava de arvore seca, senhora dos mortos, pois seu ventre expulsava apenas bebes mortos.

A menina permanecia escondida nas crises de raiva da senhora e ficava espantada ao observar que um terço estava sempre no pulso da irada mulher. Enquanto gritava, uma espuma branca surgia no canto de sua boca. Parecia um demônio. Como um demônio podia carregar um terço? Para essa pergunta  Isabeau nunca obteve resposta.

A senhora cadela bicuda sempre terminava seu discurso de impropérios da mesma maneira. “Vocês impuros,  nem pensem em tocar na comida do Dom. Eu deveria colocar um cocho, no meio da cozinha, para vocês comerem, como porcos que são.” Saia batendo os pés e espumando como uma cadela louca, carregando seu belo vestido, penteado perfeito, seu terço e principalmente todo seu ódio e infelicidade. “Será o Dom também assim?” pensava a criança que não sabia se sentia mais medo ou ódio daquela mulher.

Cintia Bordwell

Vulgar


Ela é vulgar.
Vulgar no olhar, no andar, no falar, no vestir, no pensar.
Vulgar como registra sua imagem em pixels.
Tão vulgar que seus poros transpiram suor, perfume barato e ansiedade.
Um composto nauseante.

Ela se diz feliz, simples, mas na próxima sentença desdiz.
Na tentativa de demonstrar uma complexidade inexistente.

Sua mente é rasa. Foi apenas fabricada para propagar a vulgaridade. Vulgaridade que grita nas
cores, no contorno da boca, nos agudos e graves que emite.

Sua vulgaridade está nas entranhas, impossível extirpar.

Vulgar está presente em todos nós. Se não explicito, está na sombra.
Se não reconhecido e assimilado, toma de assalto nossas atitudes.
A moça se transforma em nosso espelho.
Muitos a desprezam.
Eu a observo, na tentativa de compreender o vulgar em mim existente.
Pobre moça, criada apenas para ser vulgar e assim o meu desprezo toma o seu lugar.

(Artemísia Q.F.)