“Isso vai ficar bom, muito bom.” Imaginava a
menina de 7 anos, olhando fixamente uma robusta ave negra deitada na grande
mesa de madeira. Enquanto isso, o corpulento cozinheiro estava de costas,
preparando alguma outra deliciosa iguaria.
Ela sabia que para saborear o
prato que estava sendo preparado, seria necessário roubar. Roubar um pedaço da
ave assada, seria impossível, mas uma batata ela pegaria. Isso já estava
decidido. Batatas capturam o sabor do prato principal. Ela também sabia que se
fosse pega a surra seria enorme. As punições no castelo eram duras para os
servos e ali crianças também eram servas.
Percorreu com o olhar a grande
cozinha a procura da mãe. Localizou a esguia senhora debruçada no caldeirão de sopa. Sua mãe era
responsável pela comida dos servos. “A nossa comida não é ruim, mas a deles é
tão melhor.” Pensar sobre isso causava um grande pesar na pequena. Observar o preparo, sentir os aromas e nunca poder saborear a comida dos senhores era uma
tortura. Veja, mas não toque. Você não é suficientemente bom para essa comida. Por
isso ela roubava. Roubava batatas. Já tinha sido pega algumas vezes. Alguns
servos não se importavam, mas outros e principalmente o cozinheiro, batia com o
que tivesse na mão. As dores e as marcas permaneciam, mas não eram maiores do
que a vontade de comer o que era proibido.
Os dias eram quase tranqüilos na
cozinha do castelo. Fora um acidente ou outro, uma surra ou puxão de cabelos.
Tudo quase sempre transcorria igual, a não ser quando havia uma ocasião
especial. Um jantar, uma festa. Então a cadela enlouquecida descia dos céus
para infernizar, humilhar, deixar em agonia todas as criaturas que faziam parte
do preparo.
Ela vinha com suas aias. Vinha
sempre em lindos vestidos beges. O cabelo impecável, em arranjos que valorizavam
o rosto magro e austero. Mas há tempos que a juventude e alegria tinham deixado
aquela face. Se é que algum dia foi alegre, pode ter sido bela. Seu perfil
tinha algo de chocante. O nariz era grande demais. Alguns servos a chamavam de
cadela bicuda.
Ela não descia apenas em ocasiões
importantes e quando isso acontecia era pior. Vez ou outra, descia apenas para fazer xingamentos,
gritar com os servos. Dizia que a cozinha era um chiqueiro e todos seus
trabalhadores eram piores que porcos e cães. Ela agarrava a touca das servas e
arrancava com ódio, dizendo que como podia a comida ser preparada por mulheres
que deveriam estar trabalhando no puteiro, ao invés do castelo. Seus gritos
eram estridentes e sua boca se tornava mais suja do que a dos soldados bêbados.
Diziam as arrumadeiras que suas
crises de ira aconteciam logo após brigar com o Dom. As brigas ocorriam com
alguma freqüência. As mulheres que trabalhavam no céu, comentavam que ele a
chamava de arvore seca, senhora dos mortos, pois seu ventre expulsava apenas bebes mortos.
A menina permanecia escondida nas
crises de raiva da senhora e ficava espantada ao observar que um terço
estava sempre no pulso da irada mulher. Enquanto gritava, uma espuma branca
surgia no canto de sua boca. Parecia um demônio. Como um demônio podia carregar
um terço? Para essa pergunta Isabeau nunca obteve resposta.
A senhora cadela bicuda sempre
terminava seu discurso de impropérios da mesma maneira. “Vocês impuros, nem pensem em tocar na comida do Dom.
Eu deveria colocar um cocho, no meio da cozinha, para vocês comerem, como porcos
que são.” Saia batendo os pés e espumando como uma cadela louca, carregando
seu belo vestido, penteado perfeito, seu terço e principalmente todo seu
ódio e infelicidade. “Será o Dom também assim?” pensava a criança que não sabia
se sentia mais medo ou ódio daquela mulher.
Cintia Bordwell
2 comentários:
O conto é da sua autoria?
É sim Li. Lembra aquela conversa na festa? Então pois é?
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